Perfeição é mentira: por uma vida inacabada
- Wallyson Pereira dos Reis
- 8 de ago.
- 4 min de leitura
Autor: Psicanalista Wallyson Reis

Entre Paulo Freire, Winnicott e a ansiedade de dar conta de tudo
Vivemos sob o peso de uma cobrança silenciosa — e constante — de sermos perfeitos, produtivos e completos. Uma cobrança que adoece. A ansiedade, muitas vezes, nasce dessa ideia de que algo está faltando e que essa falta é intolerável. Precisamos resolver tudo, saber tudo, alcançar tudo. Mas e se a falta não fosse um problema?
Paulo Freire, em sua pedagogia profundamente amorosa e comprometida com a liberdade, nos convida a um outro olhar. Ele diz:
“Somos seres inacabados em busca constante de ser mais.”(Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido)
Freire não fala do inacabamento como um defeito, mas como uma condição existencial. O que ele nos mostra é que a vida não é sobre atingir um ponto final, mas sobre o movimento — o aprendizado contínuo, o encontro com o outro, o erro como possibilidade de crescimento.
Essa ideia contrasta frontalmente com o que nos exige o mundo atual: eficiência máxima, domínio absoluto, produtividade a qualquer custo. E é nesse abismo entre o que somos — sujeitos em processo — e o que nos cobram — seres completos e prontos — que a ansiedade se instala.
Na prática clínica e nos relatos cotidianos, vemos essa angústia de forma recorrente: pessoas tentando dar conta de tudo, de todos, o tempo inteiro. Tentando fechar o sentido da vida como quem fecha um arquivo. Tentando completar algo que é, por natureza, inacabado.
Freire falava isso a partir da sala de aula. Nenhum conteúdo se esgota em uma aula. Nenhum professor sabe tudo. Nenhuma formação é absoluta. Da mesma forma, nenhuma vida se completa nos moldes da perfeição. Sempre haverá algo que escapa. E isso não é um fracasso — é nossa chance de criar, de imaginar, de se afetar.
Entre Paulo Freire e Winnicott: habitar o inacabado
Se Paulo Freire nos ensina que somos sujeitos em processo, inacabados e em constante formação, Donald Winnicott nos convida a pensar como habitamos essa condição, especialmente na infância — mas também ao longo da vida.
Em O Brincar e a Realidade, Winnicott nos mostra que o sujeito não nasce pronto: ele se constrói na relação com o ambiente. E é nessa relação que surgem as condições para sustentar o que ele chama de experiências de desamparo criativo — momentos em que o sujeito se depara com a ausência, com a espera, com a frustração, e, em vez de colapsar, cria algo a partir disso.
“É na ausência do objeto que nasce a capacidade de criar.”(Winnicott, O Brincar e a Realidade)
Aqui está o ponto de encontro: Freire fala do inacabado como motor do aprendizado e da liberdade; Winnicott, como base da constituição psíquica saudável, onde o brincar emerge como espaço potencial, intermediário entre o real e o imaginário. Ambos defendem que não é preciso “dar conta de tudo”. Pelo contrário: é na impossibilidade de completude que a criatividade humana encontra morada.
A ansiedade, vista assim, pode ser lida como a intolerância ao inacabado, uma reação frente à falta de um espaço interno suficientemente bom para esperar, errar, duvidar, experimentar. Em vez de espaço de criação, o vazio se torna ameaça.
Quando não somos suficientemente amparados — seja por um ambiente falho ou por uma cultura que exige prontidão — o inacabado não vira gesto criador, mas sintoma. Não vira travessia, mas urgência.
Na clínica, Winnicott nos lembra que é possível sustentar o paciente em seu tempo subjetivo, sem pressioná-lo a performar uma cura ou completar um ciclo. Como Freire, ele nos diz que cuidar é respeitar o tempo do outro, confiar no processo e reconhecer que estamos sempre em construção.
Ansiar é também criar
Ao olharmos para o inacabamento como uma condição natural da existência, abrimos espaço para uma escuta mais gentil dos nossos próprios limites. No campo clínico, isso pode significar sustentar o vazio sem precisar preenchê-lo com respostas imediatas. Pode significar convidar o sujeito a suportar a incompletude sem vivê-la como fracasso.
A ansiedade, muitas vezes, é uma tentativa desesperada de completar o que não se completa. É o desejo de resolver uma equação impossível. Mas talvez o caminho não seja resolver — e sim habitar. Habitar a pergunta, o silêncio, o não saber.
Em termos terapêuticos, podemos:
Trabalhar a tolerância ao inacabado como um exercício de cuidado com o real.
Valorizar os movimentos pequenos e não lineares como formas legítimas de progresso.
Usar o pensamento de Paulo Freire para mostrar que o erro, o rascunho e o inacabado também são produção de sentido.
Ressignificar a ansiedade como parte do processo de viver e não como algo a ser eliminado.
Como dizia Winnicott:
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto pode ser criativo e usar a totalidade de sua personalidade.”
Brincar é aceitar o inacabado como espaço de criação — e não como ausência de valor.
Referências
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 1987.
Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Paz e Terra, 1996.
Winnicott, D. W. O Brincar e a Realidade. Imago, 1971.
Byung-Chul Han. Sociedade do Cansaço. Vozes, 2015.






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