Entre nascer e morrer: o tempo de ser Gil
- Wallyson Pereira dos Reis
- 22 de jul.
- 3 min de leitura

Autor: Psicanalista Wallyson Reis
A morte de Preta Gil nos atravessa. Porque não é só sobre uma artista, uma mulher negra, vibrante e corajosa que se foi. É também sobre o que em nós morre com ela. Quando alguém como Preta morre, sentimos que algo do mundo perde cor, perde ritmo, perde riso. Mas mais do que isso: a finitude nos olha de volta, sem rodeios, sem metáforas.
O que é morrer?
Essa pergunta não cabe numa resposta. E talvez nem devesse. Tentamos domesticá-la com frases feitas, com rituais que amortecem o impacto, com a negação cotidiana do tempo. Mas morrer é o que escapa ao nosso controle. É o que nos obriga a parar de lutar contra o fim. É o que delimita o espaço onde, de fato, vivemos.
Preta morreu, e isso não é poesia — é real. E, no entanto, é também uma fresta. Porque o luto que sentimos pode ser um lugar onde o mundo abranda, onde o tempo dobra, onde o silêncio permite escutar o que geralmente abafamos: que tudo é processo, tudo é passagem. Inclusive nós.
Na Argentina, há uma palavra popular: "gil". Usada para se referir a quem é ingênuo, bobo, vulnerável demais. Talvez o luto nos transforme nisso: gils — frágeis, confusos, meio lentos para o que o mundo exige de pressa. Mas será que há algo mais digno do que essa pausa? Do que esse afeto desarmado que sustenta a ausência com o que resta de presença?
Ser gil, nesse contexto, pode ser uma ética. A ética de não correr. De não performar força. De não transformar a perda em um novo conteúdo de superação. Porque não há superação: há vida enquanto houver tempo, e tempo para acontecer entre nascer e morrer.
Fomos ensinados a vencer limites. A ignorar a finitude. A anestesiar a perda. Mas talvez seja hora de deixar de lutar contra o fim, não por rendição, mas por respeito. Porque respeitar os limites da existência — do corpo, do amor, das relações, do tempo — é uma forma de cuidado. É também uma forma de luta, mas uma luta que não grita, que não exige, que apenas sustenta: o que somos, o que fomos, e o que não seremos mais.
Preta Gil viveu até o fim. Com afeto, com arte, com corpo. E morreu com dignidade, como alguém que não recusou o processo. E isso, talvez, seja o maior gesto político diante de um mundo que nega a morte o tempo todo: viver com verdade, e morrer sem medo de ter vivido.
No tempo entre o nascer e o morrer, que a gente possa ser gil. Que a gente possa sentir. Que a gente possa pausar. Que a gente possa adiar — com o afeto, com o luto, com o encontro — o fim do mundo.
Referências bibliográficas
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