Você foi deixado sozinho em momentos em que não deveria ter sido
- Wallyson Pereira dos Reis
- 1 de mai.
- 2 min de leitura

Autor: Psicanalista Wallyson Reis
"A capacidade de estar só é uma das mais importantes marcas do amadurecimento emocional."— D. W. Winnicott
Há momentos em que a solidão funda um espaço criativo, íntimo, necessário.Mas há outros em que ela rasga.
Ser deixado só no tempo errado, quando ainda se precisava de um outro para sustentar o mundo, não gera força — gera desconfiança.Não forma autonomia — forma defesa.O sujeito que precisou se proteger quando ainda não tinha recursos para isso constrói sua psique sobre a urgência de sobreviver.
A infância marcada pelo desamparo
O corpo aprende a se armar antes de ser tocado.A palavra de carinho parece falsa.O afeto se torna um campo ambíguo, onde o cuidado pode ser confundido com risco.
Em muitos casos, o que a clínica chama de reatividade, irritabilidade, intolerância ao afeto, nasce dessa ausência precoce.
Winnicott nos lembra que “a capacidade de estar só” só se desenvolve na presença confiável de outro.Quando essa presença falha, o que resta é um isolamento não criativo, uma clausura.
"Sem outro que sustente o desamparo, o silêncio se transforma em vazio, e o espaço interno vira clausura."
O trauma da ausência
Freud escreveu que “o trauma é um excesso que não encontra representação”.Quando esse excesso é a ausência — a falta de resposta, o não reconhecimento —, o aparelho psíquico não elabora: ele encarna.
O que não pode ser simbolizado se transforma em corpo:em contração muscular, em hipervigilância, em incapacidade de confiar plenamente.
“O corpo que foi deixado sozinho aprende que precisa se defender de tudo — até mesmo daquilo que poderia curá-lo.”
Somos territórios em disputa
Deleuze e Guattari dizem que “o sujeito não é origem, mas efeito de agenciamentos territoriais, políticos e desejantes”.Somos territórios — afetivos, relacionais, psíquicos.Cada encontro é uma fronteira, cada vínculo é um pacto.
Quando nossas fronteiras foram invadidas sem cuidado, o que se instala é a dificuldade de pactuar com o outro.A relação vira ameaça.O vínculo, campo minado.
E então, o sujeito só sabe existir defendendo-se, mesmo daqueles que vêm por amor.
É possível reaprender a confiança
Esses pactos antigos podem ser revistos.
“É no espaço potencial entre a mãe e o bebê, ou entre o indivíduo e a sociedade, que a vida criativa tem lugar.”— D. W. Winnicott
A clínica, e mais ainda a vida, pode ser esse espaço de reconstrução.De escuta do que não foi dito.De cuidado com o que foi esquecido.De criação com o que restou.
Você foi deixado sozinho em momentos em que não deveria ter sido.Mas agora há outra chance.Não de apagar o que passou, mas de habitar o que ainda pode ser.
É possível ensinar ao corpo que ele já não precisa lutar tanto.É possível desmontar a armadura.É possível, com cuidado, reaprender a descansar.
Referências
Winnicott, D.W. O Brincar e a Realidade. Imago, 1975.
Winnicott, D.W. A Capacidade de Estar Só. In: O Ambiente e os Processos de Maturação.
Freud, S. Além do Princípio do Prazer, 1920.
Deleuze, G. & Guattari, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Editora 34, 1995.
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