"Aceitar o Impossível: O Limite em Nós Mesmos e a Infância Prolongada da Falta"
- Wallyson Pereira dos Reis
- 24 de fev.
- 3 min de leitura
Autor: Wallyson Reis | Psicanalista

Há algo no humano que resiste à falta. Buscamos incessantemente preencher os vazios, como se a completude fosse um destino possível — na formação acadêmica, na profissional, nos laços, no consumo, no desejo. No entanto, essa ânsia de se tornar completo denuncia justamente o que tentamos esconder: um vazio que nos habita e que, ao invés de ser acolhido, se torna motor de uma busca insaciável. Freud já nos alertava que a civilização, ao impor restrições ao desejo, nos condena a uma eterna insatisfação. Em O Mal-Estar na Civilização (1930), ele afirma:
"O que se denomina felicidade, no sentido mais estrito, surge da satisfação — predominantemente repentina — de necessidades represadas e atinge, por sua natureza, apenas um gozo efêmero."
Se a felicidade é sempre transitória, se o desejo é marcado pela impossibilidade de um gozo definitivo, por que continuamos insistindo na busca por uma completude que nunca se realiza? Talvez porque, como crianças que ainda não aprenderam a brincar sozinhas, repetimos o impulso de precisar de testemunhas, de companhias que garantam nossa experiência de prazer.
Winnicott, ao falar do brincar, nos ensina que, no início da vida, só conseguimos brincar na presença de um outro que sustente essa experiência. Em O Brincar e a Realidade (1971), ele escreve:
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral, e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o self.”
Para brincar, portanto, é preciso um ambiente suficientemente bom. Mas e se esse ambiente falhou? O adulto que não experimentou uma base segura pode se lançar em uma busca obsessiva por um cenário que nunca existiu. Como se precisasse construir esse espaço ideal para, só então, permitir-se brincar — ou seja, viver. A hiperatividade do desejo — que se manifesta na compulsão por trabalho, no abuso de substâncias, na pornografia, na festa sem pausa — pode ser lida como essa tentativa paranoide de fabricar um ambiente perfeito antes de permitir-se o prazer.
Suely Rolnik, ao analisar os modos contemporâneos de subjetivação, aponta que vivemos em um tempo de captura das forças do desejo, onde a potência criativa do sujeito é sequestrada e transformada em produtividade. Em Esferas da Insurreição (2018), ela afirma:
“O inconsciente colonial-capitalístico nos formata de tal modo que desejamos, sentimos e pensamos de maneira funcional a ele, pois nos faz confundir o desejo com a reprodução de modelos que ele mesmo institui.”
Nessa lógica, a busca por completude se desdobra numa performance do desejo que nos mantém presos a modelos preestabelecidos: ter mais diplomas, mais reconhecimento, mais experiências, mais consumo. Esse "mais" nunca se basta. O desejo não é próprio, mas funcional a um sistema que o captura e o devolve em forma de um gozo impossível.
A dificuldade em aceitar o impossível está na recusa do limite. Freud já nos mostrava que há um núcleo de irrepresentável no desejo, algo que escapa, que não se completa. E, no entanto, seguimos tentando superar essa falta, como se o próximo corpo, o próximo trabalho ou a próxima experiência pudessem, enfim, nos dar aquilo que nunca tivemos.
Talvez a verdadeira liberdade não esteja na busca incansável por preencher-se, mas na capacidade de brincar sozinho — de sustentar o próprio desejo sem precisar do olhar do outro como validação. Aceitar que há vazios que não são para ser preenchidos, mas sim vividos.
A pergunta que fica é: estamos prontos para abandonar essa infância prolongada e assumir a responsabilidade pelo nosso próprio prazer?
Referências
· FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
· ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018.
· WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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